Viver a vida, escrever a vida

O primeiro é mais humilde, mais restrito; a segunda pede um esforço monumental de quem se aventura a escrevê-la

Por Cruzeiro do Sul

Se fosse riquíssimo, eu não passaria meu tempo frequentando hotéis caros. Tenho preguiça de viajar. Eu não conheceria restaurantes de renome. Meu paladar não é refinado. Eu não usaria roupas excentricamente caras. Eu ainda guardo um pouco de noção do ridículo. Eu fundaria uma editora.

Não uma editora qualquer. Seria uma editora que só publicaria biografias. Sou um leitor entusiasta de biografias. O Brasil avançou muito nesse ramo de publicação. Mas ainda há um longo caminho a percorrer.

Basta olhar para os EUA. Lá, figuras coadjuvantes rendem livros gorduchos. É o paraíso dos devoradores de biografias. Lá, por exemplo, a figura do “escritor de esportes” está consolidada há muito tempo. Gente que se sustenta escrevendo sobre treinadores, jogadores e partidas. E com o prestígio assegurado.

Dia desses, li que a editora Todavia estava prestes a lançar uma coleção monumental dos livros de Machado de Assis. Sei que houve apurado trabalho de estabelecimento de texto. Isso é crucial. Machado de Assis, na hora de pontuar, não era dos autores mais ortodoxos. Uma empreitada como a da Todavia deve ser aplaudida.

Fiquei empolgado e pensei: e uma biografia robusta de Machado de Assis? Não há. Houve tentativas. Várias delas infelizes. Abundam perfis biográficos, mas perfil biográfico não é biografia. O primeiro é mais humilde, mais restrito; a segunda pede um esforço monumental de quem se aventura a escrevê-la. Não é o caso de menosprezar o perfil biográfico; apenas é necessário dizer as coisas como elas são.

Ano passado, saiu a monumental biografia de Fernando Pessoa, escrita por Richard Zenith. Um catatau de mais de mil páginas, décadas de pesquisa, cuidado com o estilo, encaixe das miudezas com os eventos maiores. Um primor. Machado de Assis mereceria uma coisa dessas. E aqui eu poderia abrir uma lista de escritores e escritoras que estão na fila.

Se eu fosse muito rico, abriria a tal editora voltada para biografias. Eu seria chato pra caramba como chefe. Não a chatice caricatural do chefe cheio de manias. Eu seria exigente em duas frentes: pesquisa e estilo. O biógrafo teria anos para fazer seu trabalho de apuração de informações, viajaria em busca de documentos escondidos, conduziria centenas de entrevistas, teria um tempo largo para reunir o material e burilar a narrativa.

Eu não ficaria satisfeito com um amontoado de informações. A apuração teria de dar ensejo a uma forma cuidadosa de trazer a vida do biografado à tona. O bom biógrafo é detetive, jornalista, arqueólogo, historiador etc. Mas precisa ser escritor com ginga, com senso de estrutura narrativa e de ritmo. Biografia chata é um crime.

Na minha hipotética editora, Lira Neto, Ruy Castro e Fernando Morais teriam lugar garantido no conselho de administração. Ajuda muito quando o time conta com craques dessa natureza. Sei que soa hiperbólico, mas alguns dos livros que o trio escreveu estão entre os meus preferidos.

Voltando ao mundo real: se você for hoje a uma livraria, encontrará boas biografias. Gaste um tempinho para ler a primeira página de algumas delas. Se começar do jeito burocrático “Fulano de Tal nasceu na cidade X, no dia Y” saia correndo. É fria. Agora, se você leu o primeiro parágrafo e sentiu vontade de conhecer mais a respeito daquilo tudo, a sorte está sorrindo.

Não ignore esse tipo de sinal. É a felicidade do leitor.

nelsonfonsecanetoletraviva@gmail.com