Nelson Fonseca Neto
Vila redentora
Foi uma iluminação, um soco no peito. Os olhos ficaram mareados. Ritmo, letra, tudo na música é sensacional
O João Pedro gosta de ver um vídeo chamado “Abacaxi flamingo”. É um desenhinho que enaltece o domingo. Muita gente diz ser o domingo o seu dia preferido. Não é o meu caso. Considero o domingo um dia execrável. Gosto mais das tardes de sexta ou das manhãs de sábado.
No último domingo, fazia um sol daqueles bem ardidos. Eu estava fazendo uma caminhada, buscando subidas íngremes para tornar tudo mais desafiador. Faço essas coisas acompanhado dos fones de ouvido. Normalmente ouço podcasts, mas não estava com espírito favorável para isso no último domingo.
Deve acontecer com vocês, e tem nome: “saturação”. Ou: tem hora na qual o copo enche. Não obstante os perrengues do cotidiano brasileiro, a gente tem de lidar com o pânico recente (e justificado) nas escolas. É um pesadelo que arrebenta qualquer um. Não tem como ser otimista num cenário desses.
No último domingo eu queria andar até o esgotamento. Deixei de lado os podcasts usuais e coloquei umas músicas. Tenho ouvido muito Roy Orbison. Baita gênio. Mas estava na hora de variar. Recorri ao mundo do samba-enredo. Não consigo explicar o porquê.
Foram surgindo umas músicas das quais eu me lembrava. Até aí, tudo bem. Quando eu estava iniciando aquela subida íngreme que vai dar na igreja de Santa Teresinha, o celular começou a tocar “A Vila canta o Brasil”, samba-enredo da Vila Isabel, de 2013. Já nos primeiros segundos, pensei: Meu Deus, o que é isso?
Foi uma iluminação, um soco no peito. Os olhos ficaram mareados. Ritmo, letra, tudo na música é sensacional. A subidona virou fichinha. Cheguei ao topo sem bufar. Vocês talvez perguntem: por que tanto auê?
Sei lá, esse lance de iluminação é particular. A música que mexe com o meu vizinho pode me deixar indiferente. Eu posso ler um livro, ficar eufórico, recomendar a um amigo, e ele pensar que meu fuzuê é exagerado. A vida tem dessas coisas. Então não se preocupem: não farei aqui uma análise cabeçuda do samba-enredo da Vila Isabel. Só vou dizer o que aconteceu comigo no último domingo.
A letra é singela, clara. Descreve o cotidiano na Vila Isabel. Fala de colocar mais água no feijão porque o compadre chegou. Fala da lua enfeitando a procissão. Fala da alegria da comunidade que celebra as coisas boas da vida. Fala de ganhar o sustento honestamente com o suor do próprio rosto. Enfim, dessas coisas tão fora de moda.
A música mexeu comigo porque mostrou um Brasil que deu certo. O Brasil apronta umas coisas maravilhosas, sublimes. Noel Rosa, Vila Isabel, Machado de Assis, Rita Lee, Chico Science, José Lins do Rego, Mário Filho e uma pá de gente boa. A gente precisa se lembrar disso na hora do aperto.
Quando a gente vê as ruas detonadas, gente miserável às pampas, notícias escabrosas, pilantragens pra mais de metro, perspectivas tenebrosas para o meio ambiente; quando a gente vê isso tudo, ouvir o lado bacana do Brasil é redentor. E salva o domingo desanimador.