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Nelson Fonseca Neto

A sacada que não foi

A minha teoriazinha sobre vista ampla e desimpedida é a seguinte: cenários assim estimulam pensamentos de grande densidade social. É que, com uma vista dessas, a gente nota a cidade tem várias camadas

04 de Novembro de 2022 às 00:01
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Moramos num apartamento antigo no centro da cidade. Escolhemos o ninho do amor seduzidos por dois pontos: o tamanho grande da sala e uma vista livre de prédios altos próximos. Parece bobagem, mas cada um sabe onde o sapato aperta. Conheço gente que foi morar num determinado condomínio por causa da quadra de tênis com piso de saibro.

A sala grande tem dois níveis. O trecho perto da janela é uns cinco centímetros mais alto. Acho o esquema charmoso. Soube, depois, que o projeto original previa que aquela parte elevada seria uma sacada. Isso, se não estou enganado, nos anos 70. Os prédios daquela época não eram conhecidos por suas sacadonas. Tomara que eu não esteja falando besteira.

Baita orgulho morar num prédio que, em algum momento, quis ser de vanguarda. No fim, abriram mão da sacadona. Não sei se isso foi bom ou ruim. É que a parte mais alta da sala é o lugar preferido do João Pedro. Ali estão muitos dos brinquedos dele. Há, também, três estantes com livros. Então eu acho que cortar a ousadia foi um bom negócio.

Mas isso não impede alguns devaneios. Tem hora em que eu me pego imaginando como seriam as coisas aqui em casa se tivéssemos uma sacadona. E aí entram umas teorias destrambelhadas deste que vos escreve. Vamos a elas.

Com a sacadona, eu seria forçado a não passar vergonha na gastronomia. É que eu não abriria mão da churrasqueira. Eu seria um churrasqueiro protocolar ou um artista? Chance maior para a primeira opção. Mas imaginem que eu me empolgasse. Como seria? Eu veria, maniacamente, vídeos no YouTube sobre a carne perfeita? Veria, na TV a cabo, canais que mostrassem competições entre churrasqueiros? Eu frequentaria eventos com motociclistas? Seria interessante saber se carrego uma faceta dessas. Por enquanto, ela está bem guardada. Eu diria que ela está trancafiada numa masmorra profunda.

Com a sacadona, eu teria de ser mais gregário. Eu chamaria amigos com mais frequência. Eu comandaria a churrasqueira com garbo e orgulho. Será que eu passaria a dissertar acerca de cervejas artesanais? Aí seria forçar a amizade.

Moramos no décimo andar. Como eu disse lá no começo, a vista é ampla e desimpedida. Dá pra ver vários pontos da cidade. É assaz interessante enxergar a igreja onde casamos, o apartamento da minha avó Clélia, boa parte da Afonso Vergueiro e por aí vai. A minha teoriazinha sobre vista ampla e desimpedida é a seguinte: cenários assim estimulam pensamentos de grande densidade social. É que, com uma vista dessas, a gente nota a cidade tem várias camadas. E nessa piração a gente acaba pensando em soluções mágicas e intervenções certeiras para as nossas mazelas.

Trocando em miúdos: tudo fica grandioso com uma vista ampla e desimpedida. Se não fosse assim, se morássemos num lugar rodeado de perto por prédios altos, acho que eu seria um ficcionista das miudezas. Eu ficaria imaginando gracinhas acontecendo em cada apartamento do outro lado da rua. Cada um tem a “Janela indiscreta” que merece.

Só que a minha vista ampla e desimpedida vem pela janela e não pela sacadona. A diferença é enorme. Dificilmente fico um tempão diante da janela. Eu certamente ficaria um tempão na sacadona. Assim, não nutro pensamentos de grande densidade social. Ou seja: quando, lá pelos anos 70, a empreiteira que ergueu o prédio onde moramos abriu mão da sacadona, ela cortou no talo pensamentos que eu poderia vir a ter sobre a nossa cidade. Para a sorte de todos vocês.

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