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Nelson Fonseca Neto

Bailinhos

20 de Maio de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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No final dos anos 80, se não estou enganado, não havia muitas boates em Sorocaba. Acho que os barzinhos também eram escassos. Eu estava entrando na adolescência naquela época. Eu não estava por dentro da vida noturna sorocabana.

Digo essas coisas porque fico assombrado com a abundância de bares, baladas e afins atualmente. Só aqui pertinho de casa são três barzinhos bem barulhentos. As noites são mais movimentadas. É fácil perceber isso pelo ruído de carros e motos altas horas. Sorte que a Patrícia e o João Pedro dormem que nem pedras.

E não estou falando de sextas e sábados. O bicho pega de terça em diante. Pelo menos é o que eu noto do alto do décimo andar. Sou do tempo em que a farra era no fim de semana. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

(Acabo de ler o último trecho e percebo os odores do resmungo. Nada disso. Cada um toca a vida do jeito que julgar melhor.)

Até meus doze, treze anos, eu só queria saber de futebol e vídeo game. Minha vida naquela época não seria afetada se a cidade passasse a viver sob toque de recolher à noite. Se a janelinha da padaria estivesse aberta para pegarmos pão e leite, beleza. Lembro com carinho dessas rondas noturnas com os meus pais e com o meu irmão. Poucos carros nas ruas. Uma maravilha.

Aí a gente cresce e joga fora hábitos e convicções. Sai a criança pacata e ordeira e entra o adolescente mais espevitado. Se bem que eu era considerado um adolescente tranquilo. Tinha gente mais frenética ao meu redor. O que eu estou querendo dizer é o seguinte: a cidade modorrenta, de uma hora pra outra, perdeu o seu encanto.

Adolescente não podia ficar batendo perna pelos poucos barzinhos e pelas mirradas baladas da vida naqueles anos. Nossa vida social era meio que um mato sem cachorro. Por isso abundavam os bailinhos. Aí eu paro pra pensar: as restrições têm lá suas vantagens. Sem os obstáculos, não daríamos valor aos bailinhos.

O que acontece diretamente conosco ganha contornos épicos. Digo isso porque aqueles bailinhos foram cruciais para a formação de muita gente da minha idade. O adulto de 2022 que olha para eles pode até dar um risinho irônico, mas sabe que muitos sentimentos intensos rolavam naqueles espaços acanhados, penumbrosos e dominados pelo aroma de Fandangos.

É meio comovente perceber como a gente se contentava com pouco. (Estou falando de adolescentes de classe média. E estou falando em termos comparativos. “Pouco” em relação às opções que um adolescente de classe média tem hoje. Ser nostálgico não elimina tantos neurônios assim.) Fui a bailinhos em garagens apertadas, em salões de festas de prédios, em salas de casas maiores. Não me lembro de firulas na iluminação. Era só apagar algumas luzes e deixar iluminação suficiente para que jovens desengonçados conseguissem transitar sem grandes acidentes. (Sempre tinha que ter algum acidente, como vocês podem imaginar.)

A comida era um treco complicado. Adolescente costuma ter fome de lobo, mas éramos adolescentes que se empetecavam para o bailinho. Muitos potes de gel azul ocupavam lugar nobre nos banheiros. E dá-lhe perfume “sedutor”. Enfim, não íamos de qualquer jeito. Tínhamos que tomar cuidado na hora de comer nos bailinhos. A mão engordurada de salgadinho arruinava o penteado cheio de rococó. Sem contar o cheiro, digamos, enfático nas mãos. Por muitos minutos, os pratos com os salgadinhos ficavam intocados, mas uma hora a natureza dava sinais de vida e vencia de goleada.

Acho que cada um que passou pelos bailinhos tem muitas histórias pra contar. Eu olho, agora à noite, pela janela da sala do nosso apartamento. Vejo muitas luzes nas ruas e avenidas. Ouço barulho de música, de carros e de motos. Imagino como seria se, magicamente, a noite diante de mim fosse, de novo, a do final dos anos 80. Tudo seria mais silencioso e mais escuro. Mas eu saberia que, logo ali, no quarteirão colado ao meu, poderia ter um bailinho rolando na garagem. E que adolescentes estariam com o coração acelerado, aprendendo o que a vida tem de bom e de decepcionante para oferecer.

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