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Nelson Fonseca Neto

O romance e a vida

13 de Maio de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Um dia perguntaram se eu tenho vontade de escrever um romance. Tenho. Por que não escrevo? Falta de capacidade e falta de tempo. Não quero falar da falta de capacidade aqui. Certas coisas são óbvias.
E a falta de tempo? Vocês poderiam sacar do bolso vários exemplos de escritores muito produtivos que levavam uma vida corrida. Nessas horas eu penso no Dostoiévski e no Nelson Rodrigues. Tudo bem. Só que tem o seguinte: na maioria das vezes, a elaboração de um romance demanda dedicação exclusiva.

Digo isso sem qualquer traço de inveja. Eu não queria estar no lugar do sujeito que conseguiu ajeitar a vida para poder se dedicar à escrita de um romance. Sou daqueles que precisam ser acossados por prazos e compromissos profissionais. Eu me veria num sufoco danado ao acordar e ver que teria horas e horas para escrever a gloriosa história que toma conta da minha cabeça.

Aí vem uma coisa interessante pra pensar: estou falando mal dos romances e dos romancistas? De forma alguma. Sou dos que defendem que a educação sólida passa pela leitura dos grandes romances. Parte importante de como eu encaro a vida vem dos livrões do Dickens, do Balzac e do Tolstói.

Feito o alerta, preciso dizer uma outra coisa: não me vejo escrevendo um romance, mas me comporto, de vez em quando, como romancista. Vou ser mais claro. Dependendo do dia, pego o caderninho e faço esboços de personagens. Faço essas coisas sem grandes sonhos. Saem uns garranchos que tentam dar conta das besteiras que me assombram.

Sempre gostei de criar personagens. Vou fazendo um perfil aqui e outro ali. Não coloco essas figuras em enredos. Essas figuras dos meus caderninhos são bonequinhos que vou criando enquanto a vida passa. Quem disse que a infância nos abandona?

(Não posso deixar a oportunidade passar: sempre rolou uma discussão interessante a respeito do processo criativo dos romancistas. Mais ou menos assim: o que vem primeiro, o enredo ou a personagem? Tem escritor que começa com a estrutura do enredo; e tem escritor que vai moldando primeiro as personagens, e aí o enredo vai surgindo de acordo com o temperamento das figuras. Não tem o jeito certo de fazer as coisas. Não deixa de ser fascinante.)

Não vou martirizar os leitores desta coluna com a exibição exaustiva das personagens que ficam zanzando na minha cabeça e no meu caderninho. Mas um ou outro eu posso colocar aqui. Lembrando: são figuras surgidas em momentos de ócio. Conhecendo algumas dessas personagens, vocês podem imaginar o que seria um romance de minha lavra. E agradeceriam minha incapacidade de levar a vida como romancista.

Um exemplo. Estou com mania de pesquisar tênis de corrida na internet. Bisbilhotando o site de uma marca esportiva famosa, deparei-me com o seguinte diamante: “Um cavalo de batalha criado para ajudar você a percorrer cada quilômetro da corrida, o tênis X continua a oferecer elasticidade à sua passada, utilizando a mesma espuma ágil que seu antecessor”. Que maravilha! Aí, o que eu fiz? Imaginei a pessoa que redigiu as palavras que eu citei. Veio à tona um cara de uns trinta anos, morando em São Paulo, cheio de ginga e amor pra dar. Frequentador de botecos descolados na Vila Madalena. Biblioteca bem fornida em casa. Antenado com os lançamentos do mundo editorial. Ouvinte entusiasta de podcasts. Alimentação regrada. Incursões no mundo da gastronomia. Hábil na hora de discorrer a respeito de criptomoedas.

E assim o cronista/romancista de araque passa os momentos de ócio.

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