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Letra Viva

A lente necessária

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

10 de Dezembro de 2021 às 00:01
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Acho que o que eu vou contar acontece com muita gente. Melhor dizendo: aconteceu com muita gente. Imagino que os leitores desta coluna sejam adultos.

Quando você decide o que quer fazer da vida, inevitavelmente você olha para pessoas que simbolizam o melhor de uma dada profissão. Essas referências concretas são fundamentais. Tenho certeza de que vocês, em algum momento, pensaram: “quero ser que nem fulano ou sicrana”.

Os que decidiram seguir a trilha da escrita passam por isso também. É só cavar com coragem o campo da memória. É conhecida a história do sujeito que decide escrever porque gosta muito de ler. Só que essa conversa é vaga. Vou tentar ser mais concreto.

É claro que a leitura é o adubo da escrita. Todavia, não é qualquer leitura que aciona o gatilho da escrita. Cada sujeito que deseja ser escritor sabe que tem aquele momento que pode ser resumido da seguinte forma: “eu quero escrever assim, que nem esse cara!”. Aí ninguém segura.

O meu gatilho foi Dalton Trevisan. Eu li alguns contos dele e pensei: “achei o meu caminho”. As semanas seguintes foram marcadas por contos breves, de frases telegráficas, enchendo páginas e páginas de sulfite. Foram dias febris. Depois passou.

(Não passou a vontade de escrever. Passou a vontade de escrever que nem Dalton Trevisan. Isso não diminui a devoção que tenho por ele.)

Ao longo desses anos, foram surgindo outras referências. Eu diria que algumas admirações são possíveis e outras, impossíveis. Vou mencionar alguns nomes. Peço perdão se soar pedante. Não estou vomitando erudição. Apenas quero ilustrar o processo.

Tolstói é uma admiração impossível. Nunca cheguei perto de querer escrever como ele. E olha que, vira e mexe, eu dou umas borboleteadas por suas páginas. O que acontece? Aquilo é tão absurdamente bom, que inibe. A gente se recolhe e segue a vida.

(Tenho outras admirações impossíveis, mas não quero fazer longas listas. Avancemos.)

A lista das admirações possíveis é grande, maior, bem maior, que a lista das admirações impossíveis. Como eu encaro as admirações possíveis? Até que é simples: eu leio uma página; penso “caramba, isso é bom!”; penso “vou escrever algo com essa pegada”. Escrever assim é algo que pode ser atingido. Não significa que eu toque a vida dessa forma. Esse lance de “quero escrever como X ou Y” é muito mais passatempo do intelecto. Não dá para ser assim quando a bola rola de verdade. Cada texto que eu escrevesse teria uma cara diferente. Seria perturbador.

Feito o alerta, quero dividir com vocês algo que está martelando na minha cabeça nos últimos dias. Decidi reler a obra de Dashiell Hammett. Sempre alguém menciona o nome dele quando o assunto é literatura policial. Para muitos, ele foi o melhor de todos. Não quero seguir por essa seara de competição. Basta dizer que ele é um craque. Na literatura, craque pode ser exuberante ou contido. Um exemplo de exuberante: Cervantes. Um exemplo de contido: Dashiell Hammett.

Contido no vocabulário, contido na sintaxe, contido nas caracterizações das personagens. Mas não é por isso que venho pensando tanto em Hammett nos últimos dias. Muitos dos seus contos e romances mostram territórios tomados pela corrupção, pela violência, pela malandragem mais sórdida, pela picaretagem patológica. Nos textos de Hammett, as raposas não apenas tomaram conta do galinheiro: não sobrou galinha para contar a história, e as raposas estão se trucidando. É devastador. Poucos autores mostram tão bem tamanha tristeza.

É uma doideira lembrar que Hammett escreveu aquilo tudo nas décadas de 20 e 30 do século passado. É uma doideira porque, num primeiro olhar, parece longe demais do que vivemos. É uma doideira porque basta dar mais uma volta no parafuso e perceber que escrever como Hammett pode ser a chave para mostrar o buraco em que nos enfiamos. Eu bem que poderia arriscar, mas falta estômago.

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