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Letra Viva

O prazer da abundância

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

03 de Dezembro de 2021 às 00:01
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Nesta semana mesmo, eu conversava com um aluno a respeito da época de ouro do romance. A saber: algumas décadas do século XIX. Estou sendo arbitrário. Pode ser que você ache o século XX muito mais rico. Mas voltemos ao que interessa. Estou esticando a corda para o lado errado.

No meio da conversa com o aluno, ele perguntou se eu conseguiria dizer o que unia escritores tão diferentes como Tolstói, Melville, Dickens, Balzac, Dumas, Victor Hugo. Precisei pensar um pouco antes de sair respondendo na lata. Fui relendo mentalmente algumas das páginas dos gigantes do século XIX. Tons distintos, visões díspares de mundo, técnicas literárias conflitantes. Seria muito mais fácil dizer que nada unia alguns dos meus escritores favoritos, e que tudo era uma zona. Mas optei pelo caminho mais espinhoso.

Falei para o aluno que o fio que unia alguns dos grandes autores do século XIX era o desequilíbrio. Aqui, não uso a palavra no sentido depreciativo. Quero dizer o seguinte: muitos dos escritores do século XIX não estavam preocupados com o, digamos, polimento das suas obras. Estamos entrando num terreno interessante.

Entendo por “polimento” a busca exaustiva pelo estilo perfeito. Poderíamos espichar para a sequência perfeita de cenas. Um trabalho que traz, quando bem executado, a impressão de que tudo naquele texto longo está no lugar exato, e que qualquer alteração coloca tudo a perder. Na maioria das vezes, ficamos com essa impressão quando lemos um poema ou um conto bem curto. Mas há “romances perfeitos”.

Bom momento para falarmos de um escritor que é ídolo de muitos escritores: Gustave Flaubert. Flaubert é o santo padroeiro dos que encaram a escrita como a arena do rigor e do trabalho implacável. Suas cartas mostram que escrever era sofrer. São antológicas as descrições do tempo que ele levou para se dar por satisfeito com um parágrafo. Semanas e mais semanas rendendo poucas linhas.

Flaubert viveu no século XIX. De lá para cá, ele arregimentou vários seguidores. Cada um sabe onde o sapato aperta, e confesso que já fui flaubertiano. Eu tinha uns vinte anos. Lá se vão quase vinte e cinco anos. Lembro daqueles tempos com vontade de rir. Eu era cheio dos rituais. Eu pensava num argumento de conto e colocava a primeira versão no papel. Depois gastava um tempão mexendo na sintaxe e no vocabulário. Tudo aquilo está devidamente escondido numa pasta. Faz parte do jogo. Abri mão, com gosto, da firula. Hoje escrevo sem ficar penteando muito a boneca.

O que eu não quero é passar uma impressão equivocada aqui. Considero Flaubert um dos grandes da literatura. Sempre é um prazer percorrer as páginas de “Madame Bovary” e de “A educação sentimental”. “Um coração simples” é um dos meus textos preferidos. Há cenas de “Madame Bovary” que são aulas de técnica literária. Faço o convite: leia Flaubert com calma. Duvido que você encontre algo fora do lugar.

Não estamos longe de concluir que Flaubert era um “estranho no ninho” entre os escritores do século XIX. Ponha lado a lado Flaubert e Dumas. Já ouvi gente citando os dois como se fossem farinha do mesmo saco. Só porque são franceses. Vai ver que é isso. Flaubert produziu páginas irretocáveis. Dumas vai tropeçando várias vezes ao longo do percurso. Os mais apressados concluirão: Flaubert é grande; Dumas é uma porcaria. Se pensaram assim, caíram do cavalo.

Os dois são gênios. Eu iria além: admiramos Flaubert e amamos Dumas. As páginas de Dumas são melosas, canastronas, hiperbólicas, indignadas, bruscas, apressadas. Poderíamos dizer a mesma coisa de grande parte da prosa de Victor Hugo. Certo, mas fale a verdade: tem como jogar no lixo “O conde de Monte Cristo” ou “Os miseráveis”? E o que dizer de Dickens? E as pirações de Balzac? E o projeto monumental de Zola?

Literatura não é prato light. Ainda bem.

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