A redação nos vestibulares

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

Por Cruzeiro do Sul

Certamente vocês conhecem algumas lendas urbanas. São histórias absurdas que povoam nossa imaginação. Muitas dessas lendas são saborosas. São símbolos culturais que merecem ser estudados. O problema surge quando a lenda se torna crença. Por exemplo, as histórias equivocadas sobre a redação do vestibular atormentam alunos e professores sérios. A encrenca começa com o gênero mais cobrado: a dissertação.

Basta pensar um pouco. Costumamos escrever dissertações sem ser no contexto escolar? Não. Encontramos dissertações em jornais, revistas e sites? Não. Existe um escritor clássico de dissertação na literatura brasileira? Não. Ainda é possível piorar: para quem escrevemos a dissertação? Só sabemos que é para uma entidade misteriosa chamada “corretor”.

Assim, a dissertação é terreno fértil para fórmulas milagreiras. Há de tudo um pouco nesse mafuá: a dissertação só pode ter quatro parágrafos; é obrigatório iniciar os parágrafos de desenvolvimento e de conclusão com uma conjunção; o autor da dissertação não pode expressar sua opinião; gerúndio está proibido; a partícula “que” só pode aparecer cinco vezes; os corretores adoram linguagem parnasiana. É um festival de abobrinhas. O professor que recorre a essas fórmulas não sabe o que está fazendo. Ou sabe, e é estelionatário.

Das abobrinhas mencionadas acima, duas são mais perigosas. São as que dizem que o autor da dissertação não pode expressar sua opinião e que os corretores adoram linguagem parnasiana. Dissertação sem posicionamento não existe. Um bom texto dissertativo entrelaça opinião com fundamentação dessa mesma opinião. É saudável que o ponto de vista seja reforçado, por exemplo, por dados estatísticos. Complica tudo se eu escrever, numa dissertação, que os crimes contra a vida aumentaram dramaticamente no estado de São Paulo e os números mostrarem que não é bem isso o que está acontecendo. Usar suportes externos é importante, mas eles não podem sufocar a opinião. Há que se equilibrar os elementos.

A crença de que os corretores adoram linguagem parnasiana é uma praga. Muita gente dança feio ao seguir essa recomendação. O resultado: um texto ridículo. Como se um casal muito amigo me convidasse para um jantar na casa deles e eu aparecesse trajando um lustroso smoking. Certamente acreditariam que estou com algum distúrbio. Escrever é como escolher roupa. Não nos vestimos da mesma forma em todas as ocasiões; não escrevemos com a mesma pegada em todas as circunstâncias. O drama é que muita gente acha que a dissertação é o ápice da solenidade. Não é. Claro que se pede que o texto seja escrito de acordo com a norma padrão, mas há um abismo entre escrever de acordo com a norma padrão e escrever um texto engessado, gorduroso. Dá para ser simples e formal ao mesmo tempo.

O Enem chegará daqui alguns meses. Sabemos que haverá dissertação na prova de redação. Trata-se de uma prova com um elemento que a diferencia das demais instituições: a necessidade de escrever uma proposta de intervenção. É um tormento para os que farão a prova. Nada que o bom senso e muito treino não resolvam. Importante partir do princípio de que ninguém espera a sugestão que resolverá definitivamente um problema. O candidato deve pensar em propostas que ataquem uma situação a partir de vários ângulos; deve mencionar as instituições que poderiam aliviar um cenário grave. Como dissemos há pouco, o bom senso ajuda. Vocês, por acaso, já viram uma situação complexa ser resolvida imediatamente a partir do toque mágico de uma varinha de condão?

Se houver busca pela simplicidade elegante, sustentada por informações e referências pertinentes, a redação deixará de ser lenda urbana para tornar-se um espaço de importantes posicionamentos.

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