Tradição

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

Por Cruzeiro do Sul

Sempre é bom lembrar: a prosa de ficção tem como patronos os contadores de histórias que entretinham o público em torno da fogueira.

Depois de milênios, isso acaba passando batido muitas vezes. Do tronco da oralidade foram surgindo vários galhos, grandes e pequenos. Evidentemente, o nível de sofisticação técnica aumentou. Gustave Flaubert, no século 19, é uma bela prova.

As técnicas narrativas avançaram, o que é muito bom. Nossa vida de leitores fica mais rica com o monólogo interior de Molly Bloom, em “Ulysses”, de James Joyce. Agora, o que não pode ser ignorado é algo de uma simplicidade comovente: ainda hoje as histórias devem prender a atenção dos leitores. Sem isso, o prédio da narrativa desaba.

Por maiores que sejam as pompas e circunstâncias, a história deve instigar o leitor a ir à próxima página. “Anna Kariênina”, de Tolstói, é um dos grandes romances de todos os tempos porque desperta constantemente nosso interesse. Seu início é arrebatador. A casa de uma família aristocrática está um caos por conta do adultério cometido pelo marido. Queremos saber se a paz será restabelecida. E acabamos mergulhando num enredo de mais de 700 páginas.

Um dos aspectos mais fascinantes da trajetória da narrativa é que muita gente ainda recorre à simplicidade original. São escritores consagrados pelo estilo cristalino. Deles emana uma enorme sabedoria. Escritores que hipnotizam os leitores e trazem verdades incontornáveis. É o casamento fundamental do entretenimento com o olhar de quem entendeu a vida como ela é.

Não há dúvidas de que um dos grandes representantes dessa notável linhagem é Aharon Appelfeld. Sua vida, em meio aos horrores da Segunda Guerra Mundial, foi um pesadelo. É a realidade mostrando-se mais absurda do que a ficção. Mas Appelfeld superou as desgraças e tornou-se um dos grandes autores das últimas décadas. Seus livros, escritos a partir de uma simplicidade decantada, reconstroem os horrores dos anos 30 e 40. Ficamos com a impressão de que alguém muito sábio nos conduz em meio às trevas.

As boas histórias podem ser relatos do que acontece com o narrador ou do que acontece com personagens observadas (e criadas) pelo narrador. O velho papo da primeira pessoa ou da terceira pessoa. Questões técnicas que não podem ser ignoradas. Imaginem “Dom Casmurro” com narrador onisciente em terceira pessoa.

Importante notar que a arte de contar boas histórias não se limita a coisas inventadas. Muitas das grandes narrativas são exemplos de jornalismo de alto nível. Truman Capote. Norman Mailer. Fernando Morais. Gay Talese. Tom Wolfe. Anthony Bourdain. Histórias que brotam de grandes observadores. Histórias que brotam de pessoas que são implacáveis consigo mesmas.

Muito se fala dos grandes ficcionistas. De fato, a criação de enredos e de personagens é algo prodigioso. Mas não nos esqueçamos da boa e velha capacidade de reparar nas coisas ao redor. Usando a comparação com o cinema: o documentário também é obra de arte. Eduardo Coutinho confirma o que estamos dizendo aqui.

Na seara das histórias centradas na observação aguda, uma excelente pedida é a dobradinha formada pelos livros “Levante-se o réu” e “Levante-se o réu outra vez”, do português Rui Cardoso Martins. Ao todo, são 200 crônicas protagonizadas por figuras que povoaram sessões públicas de um tribunal de Lisboa. São textos ora engraçados, ora devastadores. Aparece o golpe fuleiro e aparece o assassinato tétrico. Cardoso Martins sempre desperta nosso interesse de leitores/ouvintes.

É a narrativa cumprindo o seu nobre dever.

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