Cindy tem ambições frustradas. Pretendia ser médica e acaba sendo enfermeira em um consultório de um médico que a assedia. Trabalha duro, cuida da casa. Seja por qual razão for, ela parece estar sempre apressada, mau humorada, tensa. De certa forma, os tradicionais papeis de marido e mulher estão invertidos: ele é o pai atencioso e cuidador, ela é a mãe que luta para prover a família. Sente que o marido se completa com a relação conjugal e não se dá conta das necessidades dela. Sua mãe continua se mantendo presa a um casamento infeliz com um homem a quem não ama e que é verbalmente violento. Quando a relação com Dean se inicia, ela não é apaixonada por ele. Por isso, pergunta à avó como é estar apaixonada; e a avó responde que acha que nunca descobriu; e que amou o marido talvez um pouco, apenas no começo.

Dean e Cindy tentam, cada um à sua maneira, livrar-se dos efeitos provocadas pela vivência de relações familiares destrutivas. De fato, o primeiro tenta corrigir a ausência da mãe que o abandonou quando criança. Por isso, já no começo do filme, quando o cachorro da família, Megan, foge, deixando a pequena Franquie desesperada, Dean mostra suas qualidades quando se comporta ao mesmo tempo, como pai e mãe da menina. Ele é amoroso e empático e, preocupado com o bem estar da criança, disfarça a preocupação com o sumiço do animal, alegando estar com fome e disposto a comer suas mãozinhas. Ambos riem e seguem para acordar a mãe, também com brincadeiras, que a ela irritam. Sua preocupação de manter a família unida, faz que se comporte também como esposo afetivo.

Por outro lado, Cindy se aproximou do violento Bobby Ontario no passado, identificando-se assim com a mãe com respeito ao pai. Ela não sente muito afeto por um marido que, embora atento à paternidade, parece ignorar os apelos da esposa de parceria e cumplicidade. E que toma às vezes atitudes de agressividade disfarçada, como acordá-la quando ela não quer ser acordada.

As cenas iniciais do filme mostram Cindy como uma dona de casa focada nos afazeres domésticos. A ideia de que poderia não ter uma relação afetuosa com a filha Frankie quando diz “não quero limpar a bagunça de duas crianças” ou quando dá à filha um mingau mal preparado, é descartada na cena seguinte. A mãe troca as roupas da filha de maneira amorosa, com brincadeiras, mostrando que não se trata de um problema entre mãe e filha, mas de um problema conjugal. A propósito, durante todo o filme, Cindy só consegue ter uma relação afetuosa com a filha quando esta está exclusivamente sob seus cuidados e não aos cuidados de casal. O casal não cuida da casa juntos, nem da filha, nem do cachorro.

Com o desenvolvimento do relacionamento, Dean já não é mais aquele adulto tão empenhado em atender às necessidades da jovem fragilizada. Ele força a reserva de um quarto de hotel para uma noite supostamente romântica com Cindy. Com isso, tenta dar um pouco de calor a uma relação que se tornou apática. Fica evidente que ela não tem o menor interesse no projeto. Mas o marido ignora os argumentos da esposa e finge não entender o seu desinteresse. Feita a reserva, ambos seguem para o supermercado e, como sempre, a tarefa das compras fica a cargo dela, e ele aguarda do lado de fora, fumando.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec.