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Nelson Fonseca Neto

Garrafa

21 de Março de 2024 às 23:07
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Aconteceu no final da tarde de um sábado. Eu estava caminhando pelas ruas do centro da cidade e ouvia um podcast sobre futebol: “Meu time de botão”. É um programa que homenageia times e figuras do passado. Tem de tudo um pouco por lá. Já ouvi coisa dos anos 60 e coisa do início dos anos 2000. Leandro Iamin e Paulo Junior, apresentadores figuraças do programa, fazem comentários certeiros entre um áudio ou outro mais antigo. Um prato cheio para o nostálgico que assina esta coluna.

Muito bem. Foi no sábado, final de tarde. Um calor absurdo. Eu estava enfrentando uma subidona daquelas bem desanimadoras. Ao mesmo tempo, Iamin e Paulo Júnior estavam falando a respeito da preparação da seleção argentina para a Copa de 98, na França. Muita coisa daquela época já estava borrada na memória, mas lembro que a coisa tinha sido meio tumultuada para os argentinos.

O técnico era o Daniel Passarella. O cara foi um craque como jogador e uma mala como técnico. Um dos pontos pitorescos da preparação argentina para 98 foi a polêmica de Passarella com os cabeludos do time. O Passarella teve o dom de, por conta do comprimento das madeixas, implicar com o Redondo e com o Batistuta. Hoje a gente olha pra trás e custa a acreditar.

Mas eu não quero falar tanto da seleção argentina de 98. O que me interessa, isso sim, foi o que os caras do podcast falaram sobre um jogo-treino daquele time. Faltavam alguns meses para a estreia na Copa. O bicho estava pegando por conta dos chiliques do Passarella. Aí a seleção marca um jogo, meio na moita, contra um time chamado “El Porvenir”, agremiação pequena de Buenos Aires.

O que vai agora não está fartamente documentado. Dizem as testemunhas que um jogador do Porvenir, “Garrafa” Sánchez, fez uma exibição de gala. Fez gols e meteu uns dribles invocados. Há quem diga que o Simeone, conhecido atleta da seleção, quis pegar o ousado na porrada.

Pouco me importa se o “Garrafa” Sánchez azucrinou a seleção ou não. Acho que ele fez o que dizem. Falo isso baseado numa verdade acessível a todos os que, de um jeito ou de outro, bateram ou batem sua bolinha: há dias em que jogamos mais inspirados. Faz muito tempo que abandonei as quadras e os campos, mas tenho vivos na memória os dias em que joguei bem acima dos meus padrões. Sabe aquele jogo em que dá tudo certo? Você marca um golaço, dá passes milimétricos, inventa uns dribles deslumbrantes. Parece que você está em transe. Vai ver você está em transe. Só isso explica. Depois o mundo volta ao eixo.

Então a história do “Garrafa” Sánchez não é tão absurda assim. Cativante ela certamente é. E é pelo suposto feito do protagonista e por seu apelido. “Garrafa”. Vem da profissão de seu pai, entregador de botijões de gás. (Na Argentina, “botijão” é “garrafa”.) Talvez seja viagem minha, mas vá ter um apelido simpático assim lá longe!

Por sorte, existe um treco maravilhoso chamado internet. Há várias páginas tratando da vida e da carreira de “Garrafa” Sánchez. Aí a gente fica sabendo que ele: era um meia habilidoso; que tinha uns lampejos de craque; que era uma figuraça; que era apaixonado por motos.

E morreu por conta da paixão, no dia 8 de janeiro de 2006, num acidente de moto, ao tentar praticar um truque. Sabendo dessas coisas todas, torço para aparecer alguém com pendores de escritor para transformar a vida de “Garrafa” Sánchez num robusto romance.

Merecemos uma dádiva dessas.