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Nelson Fonseca Neto

Pisar macio

A sola era fininha e arrebentava tornozelo e joelho. Como demora pra gente acordar pra vida!

22 de Fevereiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Sou dos que acreditam que os calçados revelam muita coisa a respeito de quem os está usando. Favor não confundir: não fico olhando de maneira constrangedora para os pés das pessoas. Sobrou um pouco de sabedoria social na pessoa que assina esta coluna.

Olho para o armário onde guardo meus calçados e levo um susto. Os tênis dominam o espaço. Acho que não tenho mais sapato social. Aos 46 anos, sou um acumulador de tênis. Não é o caso de dizer se isso é bom ou ruim. Trata-se de uma fria constatação.

Uma boa notícia: os sapatênis estão desaparecendo da minha vida. Ainda restou um par, que eu guardo sei lá por qual motivo. Tive a minha época de sapatênis. Passou, e isso é prova de que envelhecer tem lá suas vantagens.

Eu lembro da época em que eu recorria ao sapatênis. Eu tinha três ou quatro pares deles. Todos pareciam sapatos que o pessoal usa para jogar boliche. A sola era fininha e arrebentava tornozelo e joelho. Como demora pra gente acordar pra vida!

A minha implicância com o sapatênis passa pelo hibridismo da coisa. Alguém, em algum momento, pensou: por que não promover o cruzamento do tênis com o sapato? Certamente esse inventor se achou a pessoa mais genial da paróquia. A velha história de matar dois coelhos com uma cajadada só.

O sapatênis é irmão de pizza de arroz doce, do panetone de calabresa e de outras fusões melancólicas. Quem é entusiasta desses experimentos é fã do dr. Viktor Frankenstein. Convenhamos: o clássico de Mary Shelley é deveras assustador. Ou não?

Voltando ao armário onde guardo os calçados atualmente. A escassez de sapatos sociais revela que não sou adepto de formaturas ou casamentos. Há quem veja isso como algo melancólico. Eu vejo como uma vitória. Já tive a minha cota desses festejos. Nada contra quem goste deles. Que os festeiros sejam felizes. Só não me arrastem para a empreitada.

Depois dos sapatênis, abusei dos tênis do universo do skate. Quem me conhece sabe que se eu tentar subir num skate a ambulância terá de ser acionada. Minha ligação com esse tipo de calçado é puramente estética. São tênis bonitos. E tudo caminhava para uma aposentadoria descolada, maneira, estilosa.

Até eu descobrir o paraíso dos tênis de corrida. Aconteceu há pouco tempo. Até então, com os meus tênis de skatista, eu dava aula a manhã toda e chegava em casa com uma dorzinha no joelho. O tornozelo latejava. Eu achava normal, coisas da vida, o peso dos anos, essas coisas meio fatalistas.

Três anos atrás, resolvi emagrecer e fazer exercícios. Comecei com caminhadas. Depois de uns meses passei pra corrida. Comprei um par de tênis de corrida. Foi amor logo na primeira pisada.

Os inícios de jornadas tendem a ser humildes. O primeiro par de tênis de corrida não custou os olhos da cara. O segundo par já foi mais caro, pois o modelo tinha umas firulas a mais. O terceiro par, comprado recentemente, foi uma facada. Eu poderia bancar o franciscano aqui e descer a lenha na indústria dos tênis de corrida. Fica pra outra oportunidade. Agora eu preciso dizer: tem valido cada centavo. Nunca mais meus tornozelos miaram.

Olho para o armário e penso: o último par de sapatênis logo será desovado. Depois os tênis de skatista, lindos de morrer, mas meio durinhos, terão de encontrar um novo lar. E tudo será tomado pelos tênis de corrida, com suas solas hiperbólicas e suas cores berrantes. Aí sim baterá o sentimento de missão cumprida.

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