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Nelson Fonseca Neto

Gratidão premium

Sempre tem como piorar as coisas. Estou falando da maldição do "prime" e do "premium"

11 de Janeiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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E lá vamos nós a mais um capítulo da cruzada contra os aborrecimentos do cotidiano. Hoje navegaremos no mar das bobagens linguísticas. Tome o seu Dramin, pois a viagem será tumultuada.

Antes de a coisa começar para valer, um esclarecimento. Sou professor de português há mais de vinte anos. Isso traz problemas. Um deles: algumas pessoas ficam inibidas quando falam perto de mim. Muita gente acha que o professor de português sente prazer fiscalizando a fala alheia. Pode até ter professores assim, mas não é o meu caso.

As “bobagens linguísticas” a que me referi no primeiro parágrafo não pertencem ao domínio dos desvios da norma-padrão. Assim, não quero tratar de questões de concordância verbal ou de regência. Meu alvo é outro. Minha implicância é com alguns cacoetes verbais. A lista é vasta, infelizmente. Falta espaço para tratar de todos os casos. Fiquemos com alguns, mais chamativos.

A troca de “obrigado” por “gratidão” foi avassaladora. Na minha percepção torta, parece que foi de um dia pro outro. Sei que não aconteceu assim, só estou dizendo como percebi a coisa. Muitos amigos, nas redes sociais, passaram a recorrer ao “gratidão”. Perguntei a um deles o porquê. A explicação: “obrigado” passa a impressão de algo forçado. Nessas horas a gente mantém a expressão atenta e torce para a conversa acabar sem maiores sequelas.

Dias desses, num dos canais da TV aberta, apareceu, como uma assombração, a figura do Sergio Mallandro. Pensei que ele estivesse aposentado, desfrutando do justo descanso. Ele continua ativo e espevitado. As mesmas roupas e o boné meio de lado. Até aí tudo bem. Só que ele tem 68 anos de idade.

Tenho de tomar cuidado com o que vou falar. Não quero magoar ninguém. O que direi é bobeira minha, você não precisa concordar. Pode até dizer que estou sendo ridículo. Não tem problema, conseguirei tocar a vida. Digo isso porque tenho dificuldade com os tempos atuais, que embaralham as marcas das faixas etárias. Espero encontrar o comportamento meio avoado, a fala mais exacerbada, os palavrões e as roupas espalhafatosas nos adolescentes. Fico meio incomodado com o cinquentão que incorpora o adolescente.

Tudo piora quando o cinquentão solta um “rolê” no meio da conversa. Há quem veja isso com simpatia, como sinal de vitalidade, de frescor, de jeito certo de tocar a vida. Bem que gostaria de encarar assim. Infelizmente, para mim, o cinquentão adolescente é meio mórbido. Não estou pensando em paralelos com Peter Pan. Antes fosse. A comparação mais forte é com a Baby Jane do filme estrelado por Bette Davis e Joan Crawford. Gaste um tempo vendo o filme. É assustador e mostra uma Bette Davis madura com todos os trejeitos de uma criança. Cabelo, roupa, vozinha. Enfim, assusta bastante.

“Gratidão” no lugar de “obrigado”. “Rolê” saindo da boca do senhor. Está de bom tamanho, não? Sempre tem como piorar as coisas. Estou falando da maldição do “prime” e do “premium”. Não tinha dessas coisas quando eu era adulto jovem. Algumas coisas lembram a simpática fruta kiwi. Surgem do nada e passam a fazer parte do cotidiano. (Para os que têm mais de quarenta anos: não tinha kiwi na nossa infância. É só puxar da memória.)

De uns anos pra cá, o comércio decidiu que “prime” e “premium” alegram a vida dos consumidores. Eu queria ter a sorte de estar no lugar em que essas coisas são inventadas. Sim, porque alguém, em algum lugar, decidiu que palavras como “prime” ou “premium” balançariam o coreto. Não só balançaram como destruíram o coreto. Tudo é “prime” ou “premium”. Sinto-me “diferenciado” nessas horas.

Encerro por aqui. antes de dar um rolê com o João Pedro e a Patrícia, vou comer uma maçã premium. Gratidão a todos os que chegaram até aqui.

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